Me lembro, numa idade da qual não tenho lembrança, deste minúsculo fato, tão corriqueiro, tão usual. Eu também era pequena, ou me sentia assim, e fui brincar na casa da melhor amiga. Melhor era ser muito bom, mas pra melhor sempre tinha também muita expectativa.
A mãe da melhor era professora, brava, exigente, elegante, tipo de pessoa que mete medo e ao mesmo tempo trai. Naquele dia, ela preparava enfeites pra uma festa e nos chamou pra ajudar. A tarefa era específica: pintar uns coelhinhos de papel, vários deles, que decorariam doces e brindes. Havia padrões de cores e contornos pra seguir, mas naquele momento, por alguma razão que me era desconhecida, isso não me pareceu importante.
Mergulhei na tarefa livre e sem medo.
Finalizado o projeto não me contenho de ansiedade, confiro o coelho da amiga e a ficha cai. Cheia de respeito, admiro sua caprichada habilidade de copiar. Tenho um lampejo de pensar que o pensamento de estar fazendo diferente me passou pela cabeça, mas seguiu adiante. Meu desenho era fora de padrão e eu percebi isso e pronto. Mesmo porque, a essa altura, não tinha como voltar atrás. Movida por estranhas motivações, copio compulsivamente a postura da amiga que, cheia de si, parece alguém muito importante. Alguma coisa era preciso copiar. A mãe não está muito boa agora, impaciente, ela esbraveja palavras de ordem.
Cumprir prazos, apresentar resultados.
Sem saber o que virá, imito tudo que a amiga faz. Ela espera com seu coelho na mão. Eu espero com meu coelho na mão. Os coelhos seriam avaliados, tipo uma prova e com essa eu não contava. Branco na orelha, vermelho no laço de fita, azul no céu, verde na grama, amarelo no sol, laranja na cenoura. Deus do céu, meu desenho não tinha nada disso, o que isso significa, o que vai acontecer? Eu tava brincando e agora é esse negócio sério de entregar o coelho do jeito que a tia mandou e eu não combinei nada disso. Encolhi e fiquei menor do que era, vendo tudo muito grande. Queria virar uma poeira, queria ir pra casa.
Eu não virei poeira, o tempo que passou pareceu enorme como todas as pessoas que não são eu e aí veio o veredicto. Impronunciável, ele era feito de um único olhar. E nessa hora eu tive certeza que tinha feito uma coisa muito errada e era claro que não tinham gostado do meu desenho, mas diziam que estava bom e havia uma cumplicidade nos olhos daquelas mulheres que apontava pra mim e dizia que eu não era adequada, que eu tinha quebrado as regras, que naquela festa não tinha lugar para pessoas nem coelhos como eu. Mas o pior de tudo é que elas não disseram isso, elas só olharam isso por trás de um sorriso que me excluía.
Foi a primeira vez que eu vi e senti uma coisa dessas.
E não sei nem se tem nome pra dar.
O coelho da amiga foi colocado na fila dos “lindos e prontos para enfeitar” e o meu ficou estrategicamente fora da tal fila numa outra fila que só tinha eu.
Fui capaz ainda de perguntar:
- “Tia, o meu coelho não vai pra mesa de enfeite?
- “Vai sim querida, daqui a pouco. Tá separado porque é muito especial.”
***
Procuro agora a razão lá do começo, a que me fez ignorar os medos e os padrões.
Um desejo não deveria nunca ficar tímido. Nessas ocasiões, ele costuma deixar as razões perdidas no meio de histórias.
Por isso também é muito bom que se possa contar histórias, porque assim temos chance de encontrar outras razões.
A mãe da melhor era professora, brava, exigente, elegante, tipo de pessoa que mete medo e ao mesmo tempo trai. Naquele dia, ela preparava enfeites pra uma festa e nos chamou pra ajudar. A tarefa era específica: pintar uns coelhinhos de papel, vários deles, que decorariam doces e brindes. Havia padrões de cores e contornos pra seguir, mas naquele momento, por alguma razão que me era desconhecida, isso não me pareceu importante.
Mergulhei na tarefa livre e sem medo.
Finalizado o projeto não me contenho de ansiedade, confiro o coelho da amiga e a ficha cai. Cheia de respeito, admiro sua caprichada habilidade de copiar. Tenho um lampejo de pensar que o pensamento de estar fazendo diferente me passou pela cabeça, mas seguiu adiante. Meu desenho era fora de padrão e eu percebi isso e pronto. Mesmo porque, a essa altura, não tinha como voltar atrás. Movida por estranhas motivações, copio compulsivamente a postura da amiga que, cheia de si, parece alguém muito importante. Alguma coisa era preciso copiar. A mãe não está muito boa agora, impaciente, ela esbraveja palavras de ordem.
Cumprir prazos, apresentar resultados.
Sem saber o que virá, imito tudo que a amiga faz. Ela espera com seu coelho na mão. Eu espero com meu coelho na mão. Os coelhos seriam avaliados, tipo uma prova e com essa eu não contava. Branco na orelha, vermelho no laço de fita, azul no céu, verde na grama, amarelo no sol, laranja na cenoura. Deus do céu, meu desenho não tinha nada disso, o que isso significa, o que vai acontecer? Eu tava brincando e agora é esse negócio sério de entregar o coelho do jeito que a tia mandou e eu não combinei nada disso. Encolhi e fiquei menor do que era, vendo tudo muito grande. Queria virar uma poeira, queria ir pra casa.
Eu não virei poeira, o tempo que passou pareceu enorme como todas as pessoas que não são eu e aí veio o veredicto. Impronunciável, ele era feito de um único olhar. E nessa hora eu tive certeza que tinha feito uma coisa muito errada e era claro que não tinham gostado do meu desenho, mas diziam que estava bom e havia uma cumplicidade nos olhos daquelas mulheres que apontava pra mim e dizia que eu não era adequada, que eu tinha quebrado as regras, que naquela festa não tinha lugar para pessoas nem coelhos como eu. Mas o pior de tudo é que elas não disseram isso, elas só olharam isso por trás de um sorriso que me excluía.
Foi a primeira vez que eu vi e senti uma coisa dessas.
E não sei nem se tem nome pra dar.
O coelho da amiga foi colocado na fila dos “lindos e prontos para enfeitar” e o meu ficou estrategicamente fora da tal fila numa outra fila que só tinha eu.
Fui capaz ainda de perguntar:
- “Tia, o meu coelho não vai pra mesa de enfeite?
- “Vai sim querida, daqui a pouco. Tá separado porque é muito especial.”
***
Procuro agora a razão lá do começo, a que me fez ignorar os medos e os padrões.
Um desejo não deveria nunca ficar tímido. Nessas ocasiões, ele costuma deixar as razões perdidas no meio de histórias.
Por isso também é muito bom que se possa contar histórias, porque assim temos chance de encontrar outras razões.
Comentários
Que belo texo e argumento para uma animação. Enquanto se lê, sentimentos e imagens desfilam na cachola. Foi amelhor coisa que lí hoje.
muito obrigado!
pura poesia que me lembra a simplicidade feroz de Manoel de Barros. beleza tragicômica, dá vontade de chorar.
que a menina continue livre, pintando o mundo com criatividade, dando asas coloridas à imaginação!
beijos